Num mundo contaminado
pelos legalismos, egoísmos e violência, é necessário refletir diariamente sobre
a graça que recebemos de Deus e a graça que podemos promover dentro e fora de
nosso lar.
Dois
fatos dividiram as primeiras páginas dos jornais brasileiros em dezembro de
2003.
O
primeiro: o ex-presidente do Iraque, Saddan Hussein, foi encontrado em situação
deplorável, num buraco, após 8 meses de busca pelas tropas americanas, o que
despertou em alguns povos do mundo e, certamente, nos iraquianos, a
manifestação a favor da morte do ditador.
O
segundo: um dos garotos que caíram de um trem em movimento em Mogi das Cruzes, ameaçados
por três membros do movimento dos skin heads, morreu.
Apesar
de dois fatos distintos - o primeiro, a morte na base do olho por olho, e o
segundo, a morte gratuita – ambos dão a impressão de que matar é solução eficaz
para certos tipos de problemas. Matar coloca em escanteio a conversa, a
negociação, a tolerância, e substitui as penalidades da lei, às vezes
insuficientes para aplacar o ódio de um povo.
Mas,
assim como a flor do lótus que nasce limpa nos pântanos, uma boa notícia surgiu
das páginas violentas. A família do garoto, mesmo abatida pela tristeza, tomou
a iniciativa de doar os órgãos dele, que podem beneficiar várias pessoas e,
portanto, alegrar outras famílias. Aqueles que poderiam se sentir no direito de
ir à imprensa e dizer aos skin heads todos os palavrões que conhecem preferiram
anunciar um ato de amor.
Bom
é saber que Deus não nos olha levando em conta nosso merecimento. Agir com
graça diante da vida é mais fácil quando estão envolvidas pessoas conhecidas e
amadas por nós. No entanto, quando são inimigos, o ódio se torna o combustível
dos pensamentos. É difícil encontrar um fio de benevolência dentro do coração.
E então, as palavras de Jesus sobre orar pelos inimigos perdem o sentido.
Aliás, o próprio Jesus na cruz, agonizando de sede e dor, sentindo o peso dos
nossos pecados, e pedindo o perdão ao Pai pelos inimigos, se torna um fato
quase que meramente histórico.
Refletir sobre nosso conceito de graça e trazê-la ao
nosso cotidiano tem sido um desafio à igreja. Talvez possamos entender o que é
receber graça, mas teremos o mesmo prazer em praticá-la, voluntariamente, com
alegria?
QUESTÃO DE PRINCÍPIO
No
livro A doutrina da graça (Editora CPAD), o autor Gilberto Moreira Alves Filho
mostra a importância desse item nos relacionamentos familiares por meio de
princípios básicos do Cristianismo – anulando os legalismos. “Na graça, não
existe a lei”, diz. “A graça está ligada a um conjunto de princípios que nos
permite viver acima da mediocridade e da temporalidade do mundo, que perdeu
seus referenciais básicos”, dispara.
Tendo
atuado como professor e coordenador de escola dominical por 9 anos, convivendo
com diversas famílias, ele destaca aquilo que não pôde observar em uma igreja
tradicional: a graça. “As pessoas eram legalistas nos relacionamentos e na
própria forma de viver”, diz. “Fiquei até a década de 80 em uma igreja onde não
se podia subir no púlpito sem paletó e gravata, e, em pleno Rio de Janeiro, não
se podia usar bermuda. Isso me fez analisar o que há de essencial na Bíblia e o
fato de vivermos na época da graça”, conta.
Para
ele, princípios e temas bíblicos como o sangue (remissão), o perdão, a
semeadura, a contribuição, a renúncia, a eternidade e o serviço devem ser
manifestados nos relacionamentos em geral, mas começar de casa. Mas de que
forma isso se mostra?
Ele
explica que nosso comportamento egoísta às vezes nos faz esquecer da grande
graça que recebemos pelo sangue de Jesus e que dependemos disso, já que esse
sacrifício, sim, foi aceito por Deus para que tivéssemos remissão pelos pecados
e acesso ao Pai – e não o nosso. “No casamento, a graça se aplica, por exemplo,
quando paro de falar nos meus direitos e cobrar perfeição do outro, porque sei
que também sou pequeno e imperfeito”, diz. “É preciso orar pelo outro,
independente de ele atender à minha expectativa e conversar quando erra. Como
duas pedras brutas, ambos estão se lapidando. Pode ser dolorido, soltar faísca,
mas esse processo resulta em duas pessoas melhores”.
Perdão
é sinal de maturidade, e só pelo fato de recebermos todos os dias de Deus já
nos obriga a dar também ao outro. Mas, como tudo na Bíblia, exige vigilância.
Não se deve correr o risco de banalizar essa preciosa atitude e cair no extremo
de se aproveitar da certeza do perdão constante do outro.
Semeadura,
por exemplo, está ligada diretamente à ética. As pessoas estão plantando coisas
erradas no mundo e a Palavra diz que o que plantamos, vamos colher. Se num
casamento plantamos violência, colhemos violência; mas se plantamos respostas
brandas, colhemos isso também. Assim
como Noé, que semeou o bem numa terra violenta. Quanto mais se contribui, mais
se pode colher.
A
renúncia é outro elemento essencial e difícil num relacionamento a dois, que
mexe com nosso orgulho, mas não quando a vemos como uma atitude “por Deus e
para Deus”, independente do merecimento do nosso par. “Somente assim o ego cai
do trono”, afirma.
SERVIÇOS
Pensar
na eternidade requer estar além das vontades da alma e receber que no nosso dia
a dia temos que evitar dar lugar ao diabo, “pois nossa luta não é contra a
carne e o sangue”. Já o conceito de serviço é o lembrete da necessidade de
arregaçarmos as mangas e fazer pelo outro. No entanto, um serviço deve ser
desinteressado, um verdadeiro desafio numa sociedade onde o dinheiro não raro
toma o lugar de Deus. “O mais importante é a consciência que precisamos ter,
antes de tudo, de estar servindo a Deus. Quando nos colocamos como servos uns
dos outros, estamos prestando um culto verdadeiro a Deus. Foi assim quando
Jesus lavou os pés dos discípulos”. No casamento, o princípio do serviço
permanece o mesmo, mas com algumas peculiaridades de caráter prático. Ambos os
cônjuges são chamados ao serviço, mas há uma distinção de papéis que às vezes
gera confusão. O marido, como cabeça do lar, não pode pressupor-se superior, ou
mais importante. Tampouco a mulher, por conta da submissão de que trata a
Bíblia, deve se sentir inferiorizada, ou diminuída. Cada um tem seu papel e
Deus honra a todos.
A
experiência como ex-professor de escola dominical deu a Moreira uma ampla visão
sobre o mundo das crianças e dos jovens também. A maior dificuldade percebida
na relação pais-filhos resultava da discrepância de costumes entre uma geração
e outra. “Não obstante os pontos de convergência na forma de pensamento entre
pais e filhos, os costumes lá fora, no mundo, mudavam muito mais rápido que
dentro das quatro paredes do templo. Como resultado, as crianças,
principalmente as meninas, quando chegavam à adolescência, não conseguiam
suportar mais os costumes da religião e, ao invés de repensar os costumes e
manter a fé, abandonavam a fé e os costumes de uma só vez. E o que é pior,
conservavam lá fora a postura legalista de antes, condenando-se por não terem
conseguido seguir à risca certos costumes, em vez de procurar um caminho de
contextualização desses costumes, conservando pura e imaculada a fé e os
princípios cristãos”.
Ou
seja, resume ele, faltava aos pais a capacidade de ver e julgar além dos
costumes oriundos da sua criação. E faltava aos filhos a capacidade de separar
o costume da doutrina e detectar em uma série de leis, o que havia de
princípios eternos, imutáveis. “Os pais mudaram. Hoje a maioria trabalha fora.
Os filhos são mais ‘independentes’, recebem sua própria mesada. A empregada faz
todo o trabalho da casa. Todos querem ser servidos. Como exercitar o princípio
do serviço senão pelo resgate do significado da palavra ‘graça’? O entendimento
da graça, portanto, mostra-se crucial nestes novos tempos. Graça é mérito de
Jesus, não nosso. Salvação é fruto do sacrifício dele, não nosso. Servir é mais
do que merecemos, não é sacrifício, é bênção”, conclui.
REFINANDO A COMUNICAÇÃO
O
pastor texano Calvin Gardner, missionário da Igreja Batista de Catanduva e autor de vários artigos sobre família,
pondera que a atitude que cada um da família tem para com Deus é o que faz da
casa um lar, e a existência de pessoas em laços parentescos, em uma família.
Por isso, para falar de graça, ele enfatiza que é preciso ter o cuidado de
fazer uma boa comunicação. Isto mesmo. Não se trata de ter uma oratória
exemplar, mas uma comunicação que não seja contaminada pela corrupção (mentira
etc), manipulação (“jogar verde”, chantagear) ou murmurações. Ou seja, agir com
graça requer boa vontade e transparência, que deve começar na forma de se
comunicar com os familiares, com o alvo principal de glorificar Deus.
Para
ele, o que faz uma boa comunicação são ações de amor e o ato de escutar. “É bom
lembrar que as diferenças de opinião não são necessariamente defeitos em uma
personalidade. Quando consideramos as diferenças e procuramos aproveitar o bom
que cada um pode oferecer, estamos mostrando ações de amor para com aquela
pessoa e seu Criador”, diz. Citando Tiago 1:19, ele acrescenta: “É bom
considerarmos porque Deus nos deu duas orelhas e apenas uma boca. Pode ser que
devemos ouvir duas vezes mais do que falamos”.
Quando
entendermos que a graça é uma benevolência, um favor imerecido, algo dado sem
que se espere nada em troca, poderemos inserir isso na nossa casa. Mais do que
entender, precisamos saber que necessitamos da graça de Deus.
O
pastor Augustus Nicodemus Lopes e a esposa Minka Lopes explicam, no livro A
Bíblia e sua família (Editora Cultura Cristã), que “somente pela graça e pelo
poder do Espírito Santo operando em nossas vidas e casamentos é que podemos
cumprir aquela fidelidade de coração que o Senhor Jesus determinou (Mateus
5:28) e tornar reais as promessas feitas na cerimônia de casamento”. O mesmo
ocorre em relação às obrigações e direitos entre pais e filhos. Buscar uma vida
espiritual profunda já é o primeiro desafio em uma família. E como!
DOR E PERDÃO
Assim
como aquela flor de lótus citada no início, a graça também surge de onde menos
esperamos – e aí é melhor ainda. Há alguns anos, o canto Wellington Camargo,
irmão da dupla Zezé de Camargo e Luciano, teve um sequestro desesperador mas
com final feliz. Deficiente físico, com dores em todo o corpo, sem tomar banho
durante meses, ele teve a relha cortada pelos criminosos e ficou sem ajuda
médica, enquanto os pais oravam para que fosse libertado com vida. Numa das entrevistas
à imprensa, um jornalista perguntou: “você perdoa esses sequestradores”? talvez
esperando uma resposta do tipo “de jeito nenhum, quero justiça!”. Mas
Wellington respondeu: “Claro que perdoo! Se Jesus me perdoa todos os dias, quem
sou eu para não perdoar?”.
Gilberto Moreira
Postado pôr: Rosana
Com permissão da Editora: Fôlego da Revista Lar Cristão
Ano 17 - nº. 79 - Página 10... Janeiro/2004