quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A graça em meio às tempestades



Num mundo contaminado pelos legalismos, egoísmos e violência, é necessário refletir diariamente sobre a graça que recebemos de Deus e a graça que podemos promover dentro e fora de nosso lar.

            Dois fatos dividiram as primeiras páginas dos jornais brasileiros em dezembro de 2003.
            O primeiro: o ex-presidente do Iraque, Saddan Hussein, foi encontrado em situação deplorável, num buraco, após 8 meses de busca pelas tropas americanas, o que despertou em alguns povos do mundo e, certamente, nos iraquianos, a manifestação a favor da morte do ditador.
            O segundo: um dos garotos que caíram de um trem em movimento em Mogi das Cruzes, ameaçados por três membros do movimento dos skin heads, morreu.
            Apesar de dois fatos distintos - o primeiro, a morte na base do olho por olho, e o segundo, a morte gratuita – ambos dão a impressão de que matar é solução eficaz para certos tipos de problemas. Matar coloca em escanteio a conversa, a negociação, a tolerância, e substitui as penalidades da lei, às vezes insuficientes para aplacar o ódio de um povo.
            Mas, assim como a flor do lótus que nasce limpa nos pântanos, uma boa notícia surgiu das páginas violentas. A família do garoto, mesmo abatida pela tristeza, tomou a iniciativa de doar os órgãos dele, que podem beneficiar várias pessoas e, portanto, alegrar outras famílias. Aqueles que poderiam se sentir no direito de ir à imprensa e dizer aos skin heads todos os palavrões que conhecem preferiram anunciar um ato de amor.
            Bom é saber que Deus não nos olha levando em conta nosso merecimento. Agir com graça diante da vida é mais fácil quando estão envolvidas pessoas conhecidas e amadas por nós. No entanto, quando são inimigos, o ódio se torna o combustível dos pensamentos. É difícil encontrar um fio de benevolência dentro do coração. E então, as palavras de Jesus sobre orar pelos inimigos perdem o sentido. Aliás, o próprio Jesus na cruz, agonizando de sede e dor, sentindo o peso dos nossos pecados, e pedindo o perdão ao Pai pelos inimigos, se torna um fato quase que meramente histórico.
            Refletir  sobre nosso conceito de graça e trazê-la ao nosso cotidiano tem sido um desafio à igreja. Talvez possamos entender o que é receber graça, mas teremos o mesmo prazer em praticá-la, voluntariamente, com alegria?

QUESTÃO DE PRINCÍPIO
            No livro A doutrina da graça (Editora CPAD), o autor Gilberto Moreira Alves Filho mostra a importância desse item nos relacionamentos familiares por meio de princípios básicos do Cristianismo – anulando os legalismos. “Na graça, não existe a lei”, diz. “A graça está ligada a um conjunto de princípios que nos permite viver acima da mediocridade e da temporalidade do mundo, que perdeu seus referenciais básicos”, dispara.
            Tendo atuado como professor e coordenador de escola dominical por 9 anos, convivendo com diversas famílias, ele destaca aquilo que não pôde observar em uma igreja tradicional: a graça. “As pessoas eram legalistas nos relacionamentos e na própria forma de viver”, diz. “Fiquei até a década de 80 em uma igreja onde não se podia subir no púlpito sem paletó e gravata, e, em pleno Rio de Janeiro, não se podia usar bermuda. Isso me fez analisar o que há de essencial na Bíblia e o fato de vivermos na época da graça”, conta.
            Para ele, princípios e temas bíblicos como o sangue (remissão), o perdão, a semeadura, a contribuição, a renúncia, a eternidade e o serviço devem ser manifestados nos relacionamentos em geral, mas começar de casa. Mas de que forma isso se mostra?
            Ele explica que nosso comportamento egoísta às vezes nos faz esquecer da grande graça que recebemos pelo sangue de Jesus e que dependemos disso, já que esse sacrifício, sim, foi aceito por Deus para que tivéssemos remissão pelos pecados e acesso ao Pai – e não o nosso. “No casamento, a graça se aplica, por exemplo, quando paro de falar nos meus direitos e cobrar perfeição do outro, porque sei que também sou pequeno e imperfeito”, diz. “É preciso orar pelo outro, independente de ele atender à minha expectativa e conversar quando erra. Como duas pedras brutas, ambos estão se lapidando. Pode ser dolorido, soltar faísca, mas esse processo resulta em duas pessoas melhores”.
            Perdão é sinal de maturidade, e só pelo fato de recebermos todos os dias de Deus já nos obriga a dar também ao outro. Mas, como tudo na Bíblia, exige vigilância. Não se deve correr o risco de banalizar essa preciosa atitude e cair no extremo de se aproveitar da certeza do perdão constante do outro.
            Semeadura, por exemplo, está ligada diretamente à ética. As pessoas estão plantando coisas erradas no mundo e a Palavra diz que o que plantamos, vamos colher. Se num casamento plantamos violência, colhemos violência; mas se plantamos respostas brandas, colhemos  isso também. Assim como Noé, que semeou o bem numa terra violenta. Quanto mais se contribui, mais se pode colher.
            A renúncia é outro elemento essencial e difícil num relacionamento a dois, que mexe com nosso orgulho, mas não quando a vemos como uma atitude “por Deus e para Deus”, independente do merecimento do nosso par. “Somente assim o ego cai do trono”, afirma.

SERVIÇOS
            Pensar na eternidade requer estar além das vontades da alma e receber que no nosso dia a dia temos que evitar dar lugar ao diabo, “pois nossa luta não é contra a carne e o sangue”. Já o conceito de serviço é o lembrete da necessidade de arregaçarmos as mangas e fazer pelo outro. No entanto, um serviço deve ser desinteressado, um verdadeiro desafio numa sociedade onde o dinheiro não raro toma o lugar de Deus. “O mais importante é a consciência que precisamos ter, antes de tudo, de estar servindo a Deus. Quando nos colocamos como servos uns dos outros, estamos prestando um culto verdadeiro a Deus. Foi assim quando Jesus lavou os pés dos discípulos”. No casamento, o princípio do serviço permanece o mesmo, mas com algumas peculiaridades de caráter prático. Ambos os cônjuges são chamados ao serviço, mas há uma distinção de papéis que às vezes gera confusão. O marido, como cabeça do lar, não pode pressupor-se superior, ou mais importante. Tampouco a mulher, por conta da submissão de que trata a Bíblia, deve se sentir inferiorizada, ou diminuída. Cada um tem seu papel e Deus honra a todos.
            A experiência como ex-professor de escola dominical deu a Moreira uma ampla visão sobre o mundo das crianças e dos jovens também. A maior dificuldade percebida na relação pais-filhos resultava da discrepância de costumes entre uma geração e outra. “Não obstante os pontos de convergência na forma de pensamento entre pais e filhos, os costumes lá fora, no mundo, mudavam muito mais rápido que dentro das quatro paredes do templo. Como resultado, as crianças, principalmente as meninas, quando chegavam à adolescência, não conseguiam suportar mais os costumes da religião e, ao invés de repensar os costumes e manter a fé, abandonavam a fé e os costumes de uma só vez. E o que é pior, conservavam lá fora a postura legalista de antes, condenando-se por não terem conseguido seguir à risca certos costumes, em vez de procurar um caminho de contextualização desses costumes, conservando pura e imaculada a fé e os princípios cristãos”.
            Ou seja, resume ele, faltava aos pais a capacidade de ver e julgar além dos costumes oriundos da sua criação. E faltava aos filhos a capacidade de separar o costume da doutrina e detectar em uma série de leis, o que havia de princípios eternos, imutáveis. “Os pais mudaram. Hoje a maioria trabalha fora. Os filhos são mais ‘independentes’, recebem sua própria mesada. A empregada faz todo o trabalho da casa. Todos querem ser servidos. Como exercitar o princípio do serviço senão pelo resgate do significado da palavra ‘graça’? O entendimento da graça, portanto, mostra-se crucial nestes novos tempos. Graça é mérito de Jesus, não nosso. Salvação é fruto do sacrifício dele, não nosso. Servir é mais do que merecemos, não é sacrifício, é bênção”, conclui.

REFINANDO A COMUNICAÇÃO
            O pastor texano Calvin Gardner, missionário da Igreja Batista de Catanduva  e autor de vários artigos sobre família, pondera que a atitude que cada um da família tem para com Deus é o que faz da casa um lar, e a existência de pessoas em laços parentescos, em uma família. Por isso, para falar de graça, ele enfatiza que é preciso ter o cuidado de fazer uma boa comunicação. Isto mesmo. Não se trata de ter uma oratória exemplar, mas uma comunicação que não seja contaminada pela corrupção (mentira etc), manipulação (“jogar verde”, chantagear) ou murmurações. Ou seja, agir com graça requer boa vontade e transparência, que deve começar na forma de se comunicar com os familiares, com o alvo principal de glorificar Deus.
            Para ele, o que faz uma boa comunicação são ações de amor e o ato de escutar. “É bom lembrar que as diferenças de opinião não são necessariamente defeitos em uma personalidade. Quando consideramos as diferenças e procuramos aproveitar o bom que cada um pode oferecer, estamos mostrando ações de amor para com aquela pessoa e seu Criador”, diz. Citando Tiago 1:19, ele acrescenta: “É bom considerarmos porque Deus nos deu duas orelhas e apenas uma boca. Pode ser que devemos ouvir duas vezes mais do que falamos”.
            Quando entendermos que a graça é uma benevolência, um favor imerecido, algo dado sem que se espere nada em troca, poderemos inserir isso na nossa casa. Mais do que entender, precisamos saber que necessitamos da graça de Deus.
            O pastor Augustus Nicodemus Lopes e a esposa Minka Lopes explicam, no livro A Bíblia e sua família (Editora Cultura Cristã), que “somente pela graça e pelo poder do Espírito Santo operando em nossas vidas e casamentos é que podemos cumprir aquela fidelidade de coração que o Senhor Jesus determinou (Mateus 5:28) e tornar reais as promessas feitas na cerimônia de casamento”. O mesmo ocorre em relação às obrigações e direitos entre pais e filhos. Buscar uma vida espiritual profunda já é o primeiro desafio em uma família. E como!

DOR E PERDÃO
            Assim como aquela flor de lótus citada no início, a graça também surge de onde menos esperamos – e aí é melhor ainda. Há alguns anos, o canto Wellington Camargo, irmão da dupla Zezé de Camargo e Luciano, teve um sequestro desesperador mas com final feliz. Deficiente físico, com dores em todo o corpo, sem tomar banho durante meses, ele teve a relha cortada pelos criminosos e ficou sem ajuda médica, enquanto os pais oravam para que fosse libertado com vida. Numa das entrevistas à imprensa, um jornalista perguntou: “você perdoa esses sequestradores”? talvez esperando uma resposta do tipo “de jeito nenhum, quero justiça!”. Mas Wellington respondeu: “Claro que perdoo! Se Jesus me perdoa todos os dias, quem sou eu para não perdoar?”.

Gilberto Moreira



Postado pôr: Rosana
Com permissão da Editora: Fôlego da Revista Lar Cristão
Ano 17 - nº. 79 - Página 10...  Janeiro/2004

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